Naquela noite, Jeremy Cross fechou o livro com alívio. Passou diversas páginas cobertas de texto de um livro velho para um mais novo, um papel que resistiria mais alguns anos. Espreguiçou-se na cadeira e olhou para seu pequeno quarto que passava a maior parte do seu dia: um lugar modesto com algumas prateleiras com livros, uma cama bagunçada num canto e um armário onde suas roupas e algumas lembranças ficavam. Era pequeno porque servira para as coisas que Alfred não tinha onde colocar e não queria jogar fora também, mas Jeremy não tinha nada a reclamar do lugar, era bem ao lado da biblioteca.
O processo de reescrever livros a mão, com tinta e uma pena, era tortuoso. Demorava séculos, era tedioso, era cansativo e de vez em quando acaba errando alguma palavra no final da página, tendo que recomeçar tudo do zero. Mas, apesar de tudo, Jeremy tinha um certo prazer fazendo aquilo. Seus olhos olharam para fileira de livros no topo da prateleira, a única que era bastante vazia até, ali tinham os dois principais livros para ele no momento. A Bíblia que era o motivo de estar vivo e as anotações sobre seu
passado. O livro religioso precisava urgentemente ser passado para outras folhas e sua principal tarefa, desde o primeiro dia que tinha botado os pés de volta ao castelo, era exatamente aquela. Era complicado e o mais estressante de todos livros, seu número de folhas era irritantemente gigante e estava há quase um mês nele, mas ainda não tinha acabado. Já o segundo livro, que estava em cima da bíblia, só tinha algumas páginas com conteúdo, que eram mais anotações do que textos. Jeremy não tinha decidido ainda o que faria com aquilo, tinha prometido que escreveria sobre
eles, mas sua cabeça estava uma confusão, ao mesmo tempo que queria escrever uma narrativa sobre eles, um conto, também queria transformar tudo que tinham vivido em fatos históricos.
Ficou observando as chamas da vela dançando com as pequenas brisas da noite, as vezes parecia que ia apagar, mas nunca apagava. Suspirou, levantou-se e foi até a prateleira, pegando o livro de anotações e jogando-o na mesa. Aproximou a vela mais um pouco e abriu o livro, deparando-se logo de cara com a foto do grupo, tirada muito tempo atrás, quando todos da foto estavam vivos e juntos. Parecia outra vida, de outra pessoa, mas era a dele e aquelas pessoas fizeram parte.
Quando a bomba finalmente impactou-se no chão, o resultado foi uma explosão que fez todos em volta, perto suficiente, voarem para longe, a maioria com alguma ferida séria, fosse a perda de uma perna ou a força da explosão em seu corpo. Tyler não se deu tempo de observar os cavalos rolando no chão e os corpos voando, cambaleou por alguns metros até ajustar-se e iniciar uma corrida de verdade. Em sua volta havia apenas confusão e caos, o chão estava coberto de adolescentes, canibais, cavalos e alguns daqueles guerreiros, todos mortos e a grande maioria mutilada. E aquilo doía muito para Tyler. Conhecia praticamente todos jovens no chão, desde crianças a adolescentes, aqueles que não tinham sido sequestrados foram mortos sem piedade alguma. Era uma lista de nomes grande demais.
Queria ajudar alguém, mas ele não conseguia entender nada do que estava acontecendo em sua volta. Poderia parar, olhar em volta, procurar algum conhecido e ajudá-lo, mas Tyler não era um herói. Nunca fora, toda sua vida tinha feito as coisas por dinheiro e apenas na Terra fizera por bondade... mas era realmente bondade ou apenas seu instinto de sobrevivência? Não tinha um coração negro, mas também não tinha um coração coberto de flores. No momento, tudo que via era famosa luz no fim do túnel, o fim daquela multidão de confusão. Mas, por ironia do destino, de todas pessoas que poderia ter topado e ajudado, encontrou logo Jeremy de joelhos no chão e com os braços abertos. Sorrindo.
Pela primeira vez depois de muito tempo, a voz de Cross diminuiu tanto que os ouvidos de Jeremy mal podiam captar suas palavras, muito menos entendê-las. Talvez ele estivesse orgulhoso, o cadáver ambulante que sempre tinha que chutar para fazer as coisas finalmente tomara uma decisão sozinho, uma decisão firme e que realmente acreditava ser a melhor. Sentiu um arrepio, pensou que era a morte aproximando-se, mas a única coisa que sentiu logo depois foi um fortíssimo tapa que recebeu no rosto, acordando-o.
— Acorda, seu fodido! — berrou Tyler, puxando-o pela gola.
Jeremy processou tudo em sua volta numa velocidade assustadoramente rápida para quem tinha entrado num transe e ele podia perfeitamente ter escolhido separar-se do puxão de Tyler, voltar os joelhos à grama e abrir os braços novamente, mas seu corpo foi coberto de medo e adrenalina, fazendo com que suas pernas tropeçassem um pouco, só um pouco, até que começasse correr tanto quanto o rapaz ao seu lado. Com tudo acontecendo de uma vez, Jeremy não notou que a vontade de viver, o desespero para continuar respirando, tinha lhe estapeado com mais força que Tyler. No fundo, a última coisa que queria era morrer.
Ele e Tyler adentraram na floresta rapidamente, correndo o mais rápido que podiam. Diferente do outro rapaz, seu fôlego era bem maior, mas com todo aquele desespero, Tyler só notaria a falta do mesmo quando desmaiasse em algum canto, centenas de quilômetros de onde estavam. Escutaram alguns cavalos e alguns homens, olharam para trás e viram dois homens a cavalo vindo atrás deles, aproximando-se velozmente. Vinham sedentos em direção aos dois, ambos com armas que pareciam mais porretes do que espadas, mesmo tendo o formato de uma. Tyler parou de correr, sabendo que era inútil, a velocidade de um cavalo era o dobro da deles. A última pessoa que carregava sangue de um irlandês vivo, olhou em volta procurando alguma arma, quaisquer que fosse, justamente para que continuasse com aquele título por mais tempo, mas no final não encontrou nada.
Seria o fim para ambos, se um dos homens não tivesse caído do cavalo, morto por uma bala de pistola, dentro de seu peito. O outro diminuiu a velocidade do cavalo, olhou em volta e tão rápido quanto o companheiro, caiu no chão sem vida.
Tyler e Jeremy olharam para direção que veio o som dos tiros e encontraram Pietro com a arma ainda apontada para o homem que tinha acabado de matar. O homem soltou um gemido, abaixou os braços e apertou levemente a área do seu machucado, sentia que tinha voltado a sangrar por ter corrido tanto. Aquela ferida tinha salvado a vida da dupla, se não fosse pela dor que Pietro sentira, ele nunca teria parado ali por perto.
— Vocês estão bem? — perguntou Pietro, aproximando-se.
— Valeu, mano — agradeceu Tyler quando o homem ficou perto suficiente. — Estamos bem, sim.
A conversa foi curta e direta, sabiam que o som dos disparos atrairia muita atenção, por isso o trio saiu dali o mais rápido que puderam.
Caterine não fazia ideia de como sentia saudades de um bom banho até sentir a água escorrendo pelo seu corpo, uma sensação tão deliciosa e libertadora que a deixou paralisada embaixo do chuveiro por um bom tempo. Também não tinha percebido como estava fedorenta até tirar suas roupas. Fedorenta e suja, observou. Aquele banho proporcionava a ela tantas sensações boas que nem mesmo podia contá-las, mas o sentimento de lavar a sujeira de seus ombros, o peso que carregava com aquilo, era o mais reconfortante.
Ao terminar de secar-se, enrolou uma toalha em seu corpo e outra em seu cabelo. Foi até a pia e escovou os dentes, também era muito bom tirar o gosto de peixe da boca, o hálito terrível que carregava faziam semanas. Quando terminou de escovar e guardou a escova na gaveta, viu a pulseira que sua mãe lhe dera em cima da pia, coberta de sangue seco. Agarrou-a no mesmo instante, ligou a torneira novamente e esfregou a pulseira por vários minutos, com toda força que podia colocar nos dedos, mas o sangue não saía, a marca carmesim não sumia. Soltou um grito sufocado e jogou a pulseira num canto do banheiro, apoiando-se na pia e respirando fundo. Queria deixar tudo que tinha acontecido para trás, no passado, mas não conseguia.
Colocou novas roupas: uma camisa com a cor vermelhada já desbotada e uma imagem de uma guitarra nela, uma calça jeans rasgada nos joelhos e um colar que Pietro lhe dera, pensou em não usar, mas o pedaço de metal em formato de águia era bonito demais para desperdiçar por mágoa.
Escutou o irmão chamando-a e colocou a mão na maçaneta para sair do banheiro, mas olhou uma última vez para pulseira num canto do banheiro, refletiu se deveria pegá-la ou não, e acabou decidindo deixá-la ali mesmo.
— Me solta! — berrou Brandon, desesperado.
Caterine o abraçava com tanta força que faltava pouco para que os ossos do menino começassem se rachar.
— Eu tava morrendo de saudades de você, seu nanico! — rebateu Caterine, apertando-o mais ainda e levantando-o do chão, não muito, pois era baixinha. — Eu pensei que você tinha morrido!
— Eu vou morrer agora se você não me soltar! — implorou ele mais uma vez.
Caterine não sorria de forma tão verdadeira desde que tinha sido presa e ao encarar seu irmão mais novo, não podia evitar de voltar a sorrir daquela maneira. Ela amava tanto aquele pirralho, tudo sobre ele. Seu jeito carinhoso e fofo que as vezes tentava disfarçar sendo marrento e frio, envergonhado de se mostrar tão meloso com a irmã em frente dos amigos; o cabelo da mesma cor que o dela, só que mais escuro, que nunca estava arrumado, pois Caterine sempre certificava-se de desarrumá-lo esfregando com sua mão, algo que o irritava; os olhos tão parecidos com o de sua mãe que a acalmava sempre e as bochechas que tanto amava apertar, torturando o rapaz. O sorriso era da mãe também, era a recompensa da garota ao fazê-lo feliz na Arca, ver aquele mesmo sorriso novamente.
— Tudo bem, irmã? — perguntou ele, preocupado.
Caterine acordou de seu transe e abraçou ele novamente, tirando um gemido do irmão. Dessa vez, o abraçava mais levemente, sorrindo mais uma vez ao vê-lo devolver o abraço. Separou-se do rapaz e olhou em volta, sentia saudades de seu quarto também. Viu que algumas de suas roupas continuavam largadas pelo chão e viu o livro O Pequeno Príncipe em cima da cama.
— Eu estava lendo esses dias — explicou Brandon ao vê-la encarando o livro.
Ela costumava ler para seu irmão sempre. Na Arca, havia uma biblioteca cheia de livros antigos, todos dentro de vitrines sem oxigênio para que as folhas se degradassem muito lentamente, por isso era proibido ficar com algum deles fora da vitrine por muito tempo e mais ainda levá-los para fora do local. Como ela sempre ia até o lugar, não demorou para que descobrisse um jeito de sair sem que fosse descoberta e aquele livro se tornara uma obrigação diária dos irmãos, antes de irem dormir.
— Tem algo que eu não faço há muito tempo e quero fazer de novo — falou de repente, virando-se para o irmão.
— O que? — perguntou ele, curioso.
Caterine apenas sorriu de uma orelha a outra, maliciosamente.
Adam teve a sensação de nascer pela segunda vez ao finalmente acordar. Seus pulmões se encheram de uma só vez e seus olhos esbugalharam-se como se tivesse visto seu pior pesadelo bem em sua frente. O desespero começou dominar todo seu corpo e olhou para todas direções possíveis, sentindo-se num caixão, começou mover os braços com dificuldade pelo que estava em cima dele, ao seu redor, e quando finalmente conseguiu tatear aquelas coisas, descobriu o que eram. Cadáveres. Olhou para o seu lado esquerdo e viu o homem que estava lhe enforcando, olhou para o direito e viu um outro homem, e ao olhar bem o que havia em cima dele próprio, encontrou uma mulher grávida, com a cabeça estourada por uma marretada. Soltou um grito de horror e começou cavar entre os corpos, tentando levantar-se e sair daquela pilha. Demorou um pouco e até sair seu coração estava disparado como nunca, sentiu-se sufocado como se estivesse afogando-se, mas quando finalmente conseguiu sair da pilha, por um de seus cantos, pôde inalar o mundo exterior novamente. Mas não aproveitou aquilo, sua visão estava turva e sua cabeça explodindo, estava mais perdido e aterrorizado que nunca. Arrastou-se para longe da pilha, desesperado, e ao olhar em volta, deparou-se com mais cadáveres espalhados. A grande maioria eram mulheres, crianças e jovens. Todos descalços, o próprio Adam também se tivesse parado para reparar. A atenção de Hunt foi focada logo nas crianças e jovens que conhecia, os tantos que agora estavam caidos na grama, mortos. Seu coração parecia prestes a saltar de sua boca e ele não conseguia controlar a respiração, estava tendo uma ataque de pânico, um desespero tão agoniante que sentiu vontade de chorar, mas também não conseguia. Virou-se e tentou sair dali desesperado, tropeçando e caindo muitas vezes pela perna ferida, soltando gemidos de desespero, tentava pedir por ajuda, mas não conseguia. Escutava o som das patas dos cavalos em volta dele, os gritos dos adolescentes que brigara, das pessoas que mal tratara e agora estavam todas mortas, dos desconhecidos que atacaram sem remorso algum. Tudo parecia estar bem atrás dele, esperando que ele se virasse para levá-lo de volta a pilha de cadáveres, dessa vez sem vida.
Ao finalmente chegar nas árvores da floresta e sair da clareira, Adam caiu de costas no chão e começou a respirar com mais calma, sentindo o coração desacelerar. Escutou algumas vozes e quando abriu os olhos, viu um homem e um menino em pé ao seu lado, nem teve tempo de reagir, pois o pé do homem logo acertou seu rosto, desacordando-o mais uma vez.
As vezes, Alice tinha a impressão de apenas seu corpo ter escapado da vila dos canibais, enquanto sua alma ainda estava por lá, em volta de uma piscina de sangue e merda. Desde que havia chegado no acampamento, encontrava-se, regularmente, olhando o nada, distraída, perdida em seus pensamentos, nas poucas boas memórias que tinha. E isso tinha chamado atenção de Alana, uma das psicologas da Arca. Caterine teve a liberdade de fazer o que bem entender, mas para Alice era diferente. Seu crime era assassinato, por isso era obrigada a ir todo dia em Alana, ver como estava seu estado mental. Tinha contado uma versão bem resumida do que acontecera com ela desde que pusera os pés na Terra e por isso o Conselho teve a humanidade de deixá-la vagar pela estação, acompanhada de um guarda.
Para o Conselho e a mulher, a garota tinha sido raptada junto com outros adolescentes, que morreram todos antes dela, que escapou por sorte, quando os guardas esqueceram de trancar a porta da cabana que estava presa. Para ela, lembrava-se de cada detalhe, de cada sofrimento, de cada humilhação, de cada pessoa que poupou ou simplesmente matou. Das crianças fugindo, gritando de dor, enquanto o fogo as consumiam. E nunca percebia, que ao lembrar-se daquilo, sempre acabava sorrindo involuntariamente, como fizera naquela noite.
— Você está bem, Alice? — perguntou Alana.
A garota virou-se para mulher e deu um meio sorriso, o mais sincero que conseguiu dar.
— Estou, Alana. Melhorando a cada dia que passa. — Mentira, as duas sabiam.
A estação caída projetava-se de forma poderosa para todo campo em volta dela, em sua volta haviam cercas improvisadas e um portão feito de algum setor da Arca. Tinham várias barracas naquele espaço exterior, algumas plantações que começaram a dar frutos recentemente e pela cerca, pôde ver vários túmulos também, no lado de fora. Alice estava encostada num pedaço de madeira qualquer, que servia como poste, aproveitava a brisa suave, cheirosa e um pouco quente dali de fora, de olhos fechados e tentando evitar qualquer pensamento ruim. Mas tudo que lhe vinha em mente era Peter e a possibilidade de estar vivo, inteiro se realmente não fossem canibais. Queria encontrá-lo e salvá-lo o mais rápido possível.
Abriu os olhos ao escutar inúmeras risadas de crianças, elas que brincavam por ali, um pouco distante dela, brigando com alguns gravetos na mão como se fossem espadas. Cada risada era um arrepio nela, cada risada trazia medo e terror nela. Ergueu-se apoiada no poste, respirando fundo, tentando se acalmar, mas as crianças continuavam rindo. Fechou os olhos e foi como se tivesse abrido outros, pois via as malditas crianças rindo, acertando-a com varadas, jogando bosta e pedras nela, e rindo, e rindo. E rindo. Colocou as mãos nos ouvidos para tampá-los, mas ainda as escutava, parecia que mais alto.
— Por favor, para, por favor — implorava em voz baixa, quase chorando, mas não paravam e só parecia aumentar. — Calem a boca, porra! Calem a boca! Calem a boca!
Todas pessoas ali olharam para ela assustadas, as crianças mais ainda. Alice tirou as mãos dos ouvidos e abriu os olhos, ignorou os olhares e fugiu dali correndo, empurrando o guarda para longe. Só parou quando chegou na cantina, onde encontrou Caterine e seu irmão disputando quem comia mais rápido, com várias bandejas cheias de comida em frente aos dois. Enfiavam as colheres cheias na boca e bebiam água desesperadamente para ajudar descer. Caterine parecia outra pessoa ao lado de seu irmão, quando a conhecera era séria e de certa forma mal humorada, com o passar do tempo abrira-se mais um pouco, mas agora estava completamente feliz ao lado de seu irmão, tão feliz, sorridente, brincalhona, animada e carimástica que chegava impressionar um pouco Alice.
Ficou observando-os de longe, em pé no meio das mesas, triste. Queria ter um irmão também, alguém para ficar e fazê-la feliz, mas estava sozinha. Seu irmão era Peter e até mesmo seu amigo Thomas com quem fizera amizade também, mas ambos estavam sumidos e não fazia ideia onde.
— Alice, vem cá! — gritou Caterine, sorrindo, ao finalmente vê-la, acenando com a mão.
Alice acordou e olhou para garota acenando com o braço, viu o irmãozinho dela acenando também, não pensou duas vezes e foi correndo para mesa.
— Perdeu, otária — falou o irmão de Caterine enfiando várias colheres na boca e continuando a comer enquanto a irmã continuou acenando pra Alice.
Caterine ficou furiosa com aquilo e começou a encher a boca novamente, e Alice que sentou-se com eles, adorou observar aquilo, sentiu-se alegre e distraída, de forma boa pela primeira vez. E não demorou para que entrasse na competição também.
Tyler estava ansioso, não parava quieto onde estava sentado, queria que o sol nascesse logo e pudesse sair da caverna que tinham encontrado, a chuva que estava caindo lá fora era leve, mas os ventos fortes compensavam. Estava de noite, então o frio era bastante e por mais que os ventos batessem nas chamas da pequena fogueira, ela nunca apagava. Dançava na brisa, parecia prestes a apagar, mas nunca morria. E isso era agoniante para ele, queria agir, queria partir, queria fazer algo que não fosse ficar sentado. Durante o ataque e pelo resto do dia, ele tinha se culpado e colocado um peso gigantesco nas suas costas. A verdade era que nunca quisera ser líder, tampouco tinha gosto ou jeito para aquilo, era bom sim em organizar as coisas, conversar e convencer as pessoas, afinal vivera disso na Arca por um tempo, mas ter dezenas de vidas em seus ombros, precisar ser um herói e um exemplo para eles, a âncora de segurança, não era para ele. Mas mesmo assim, criara um sentimento com todas aquelas crianças e jovens, tinha sobrevivido as piores coisas de sua vida ao lado delas, ajudando-as e eles o ajudando. Eram como amigos para ele, mesmo os que pouco conhecia. E não podia esconder ou apagar a dor de ver tantos deles mortos, mas também não podia ignorar o fato de tantas terem sido levadas pelos desconhecidos. Se fosse para serem mortas, estariam no campo e não no colo de um cavalo, por isso, todo sentimento de que Jeremy estava certo sumira. Ele tinha esperança e continuaria com esperança, encontraria aqueles adolescentes e os salvaria, então, depois disso, afastaria-se completamente de qualquer cargo que pudessem querer dar à ele.
— Algum de vocês viram a Caterine na confusão? — questionou Pietro, cutucando a lenha com um graveto.
— Vi ela no começo, mas depois, não — respondeu Tyler. Percebeu que não a vira sendo uma das que tinham levado e com toda certeza Adam não fora levado também, suspirou internamente, rezando para que estivessem vivos... pensar na morte da garota era triste, sentia tristeza até mesmo de imaginar Adam morto. Também esperava que os gêmeos estivessem vivos, eram jovens demais para terem morrido de forma tão terrível. Doía imediatamente pensar naquelas crianças, mas colocava na cabeça logo em seguida que não os vira entre os cadáveres, então a chance de estarem vivos em algum lugar era bem maior do que a de estarem mortos.
Jeremy continuou mudo, como estava desde que tinha tomado o tapa na clareira.
— Será que ela está viva?
— Cara, mesmo que ela esteja, pelo que eu vi ela claramente não quer que você esteja — retrucou Tyler, sem paciência. Tinha esperanças, mas o estresse continuava. — Então, larga dela e se preocupa com outra coisa.
Pietro nem se deu ao trabalho de responder, não estava com saco para aquilo naquele momento. Mas continuava pensando na garota, queria consertar as coisas com ela. Sentia algo por ela e acima de tudo queria tê-la de volta.
O resto da noite passaram em silêncio, até que chegado a manhã, saíram da caverna, voltando a caminhar, em busca da Arca como originalmente pretendiam. O problema era que estavam perdidos e Jeremy pouco ajudava, do jeito que estava.
Peter tinha acordado muitas vezes no caminho para sabe-se lá onde, mas só pôde ver algo mesmo, ao tirarem o saco de sua cabeça, ao acordar num grande quarto, grande suficiente para caber ele e outros vinte e seis adolescentes. Parecia um fim de mundo, as paredes estavam descascadas e muito velhas a ponto de terem buracos, o chão estava coberto de poeira e sujeira, nos cantos das paredes haviam diversos entulhos de madeira e coisas assim. Tinham portas duplas para sair do local e na direção contrária uma janela que dava a uma visão que chocou todos eles, uma cidade viva e bem movimentada, cercada por uma floresta. Nada moderno e sim medieval, mas mesmo assim admirável por tão pouco que Peter e o resto tinham visto até aquele ponto. Era impossível ver os detalhes da cidade, pois pareciam estar num tipo de torre, num andar bem alto. As únicas saídas eram aquelas: as portas trancadas e a varanda que dava para cidade, que só serviria de saída se fosse direto para o inferno.
Tentaram arrombar as portas e elas foram abertas rapidamente por vários guardas que entraram com lanças e espadas, vestidos de couro e trapos. Jogaram frutas e carne no chão, pouco importando-se com a sujeira. Jarros de água foram deixados ao lado da porta, antes de a fecharem. Carne era algo estranho para os jovens da Arca, acostumados com comida feita nas estações e plantações, a carne que comiam no espaço era tão falsa quando o oxigênio e a gravidade que tentavam simular da Terra e falharam miseravelmente. Quando foram obrigados a comer carne, ao chegarem na Terra, todos passaram mal, forçando-se a comer aquilo e muitos vomitaram. Peter foi um deles.
Todos seguraram a vontade de ir ao banheiro o máximo que podiam, mas quem não conseguira, foram num tipo de quarto que havia num canto do "salão" onde estavam, tendo que prender a respiração e fazer ali mesmo, em algum canto.
Nos dias seguintes, vieram menos guardas para trazer os alimentos. Eram dois guardas trazendo a comida, ambos armados, enquanto mais os esperavam fora do salão, de olho em todos adolescentes.
Era a oportunidade que precisavam.
Aproveitariam-se de uma daquelas entregas de comida para escaparem dali. Os vinte e sete adolescentes, contando com Peter, se espalhariam em grupos e pelo menos um dos grupos chegaria ao exterior, fugiria pela cidade, voltaria para floresta e encontraria a Arca, pediria ajuda para que o restante fosse salvo também. Era esse o plano.
Peter e o restante estavam sentados, guardavam armas improvisadas debaixo das pernas. Pegaram pedaços de madeira que transformaram em pequenas estacas, tinha também canos, pedras e barras de ferro. Tudo que poderia ser usado para machucar ou desacordar. Não matar, isso Peter tinha pedido que não fizesse, ele não queria matar ninguém ali, não queria sujar suas mãos de sangue novamente.
— Estou com medo, Peter — disse Lily, tremendo ao seu lado.
Peter sorriu, agarrou as mãos dela e as apertou com carinho.
— Não se preocupe, vai dar tudo certo, okay?
— Eu também estou, Peter — disse Thomas numa voz chorosa, se agarrando em Peter.
— Vai se foder — respondeu Peter, empurrando o amigo rindo para longe.
— Eu também — disse Norman, um rapaz com cerca de quinze anos, de cabelo liso e bagunçado que lhe dava uma aparência um tanto quanto descuidada, com olhos muito juntos que não o agradavam e, aparentemente, outras pessoas também não.
— Eu também — ecoou Izzie.
— Porra, gente, desse jeito vamos morrer — reclamou Peter.
— Vamos morrer? — exclamou surpreso um outro adolescente.
— Provavelmente — admitiu Peter, com sinceridade.
Thomas lançou um olhar de desaprovação para Peter.
— Obviamente eu estava brincando, cara — falou, animando o rapaz. — Eu daria 70% de chances de morrermos, mas 30% de chances de sobrevivermos! — falou, desanimando o rapaz.
Thomas colocou a mão na testa e suspirou.
— 60%? — Virou-se para Lily esperando que daquela vez funcionasse, mas ela deixou claro que não balançando a cabeça negativamente. — Ah, eu tenho cara de Caterine e Tyler? Não sei fazer discurso, não sou líder.
Por mais que tivesse dito aquilo, era exatamente o trabalho que Peter fizera desde que acordaram. Acalmou os jovens, fez piadas para que se alegrassem, tentou animar o clima, ajudou quem estava com muito medo, deu sua própria comida e bebida para quem estava ferido ou fraco demais. Peter estava cuidado muito bem daqueles sobreviventes há dias.
Foram horas até que as portas se abrissem e os guardas entrassem. Eram dois como de costume carregando as comidas, enquanto três ficavam a espera na entrada. A grande maioria dos adolescentes estavam sentados, conversando entre si, para disfarçar, mas havia alguns em pé também, estes para que pudessem alcançar as portas antes de serem trancadas. O ataque quase não começou, pois Peter estava muito nervoso também, mas tinha que fazer aquilo, precisavam arrumar alguma maneira de escaparem dali e a única oportunidade seria aquela, então reuniu toda coragem que tinha e começou.
— Agora! — gritou Peter, com uma barra de ferro, acertando um golpe na perna do soldado mais próximo.
Os adolescentes em pé serviram ao seu propósito, alcançaram as portas e os guardas nelas, começando brigar com eles, sendo derrotados poucos instantes depois. Um deles foi perfurado por uma lança, caindo de joelhos no chão, com a morte cravada em seu destino. Isso enfureceu os jovens. Peter gritou para que não fizessem, mas uma barra de ferro desceu na cabeça do homem que ele tinha acabado de atacar, esmagando seu crânio e matando-o na hora. O outro que tentara escapar foi acertado na perna e perfurado por várias estacas de madeira, antes de receber uma barra de ferro na cabeça também. O rapaz de cabelos prateados, que já estava perdendo a cor e voltando ao loiro, observou aquilo sem reação, chocado. E, mesmo que não fosse exatamente sua mão a suja de sangue, sentiu o peso da morte dos homens de qualquer maneira.
Os dois outros guardas da entrada tiveram reações diferentes, um foi esperto e fugiu dali, o outro tentou trancar as portas, mas foi engolido pelos adolescentes e morreu tão rápido quanto os outros. Naquele ponto, Peter já tinha notado que era inútil tentar impedi-los. O massacre no acampamento tinha se tornado algo comum para aqueles jovens, matar era algo diário, bobo, sem peso. Talvez Peter fosse o único que não quisesse.
Mas ele não teve tempo para perder lamentando-se, deixaria aquela dor para depois, agora que já tinham completado metade do plano, tinham de fugir da torre. Então, dividiram-se em grupos e espalharam-se pelos corredores. A aparência não era tão diferente do salão, tudo ali tinha semelhança com as casas abandonadas e assombradas dos livros de terror da Arca, mesmo com toda iluminação por velas em cima de pequenas plataformas de madeira fincadas na parede e a própria luz do sol.
O grupo de Peter basicamente era ele, Lily, Thomas, Norman e Izzie. Não demorou para que todo o lugar fosse alertado do que fizeram e vários guardas se espalhassem pelo andar, buscando-os. O primeiro pego foi Norman que tropeçou e o segundo foi Izzie que separou-se deles.
Viram algumas pessoas fugirem ao os verem chegando, já outras nem mesmo se moviam. Eram pessoas sujas com roupas surradas, com cabelos bagunçados e os rostos tristes, todos eles carregavam algemas, tanto nos pulsos quanto nos tornozelos, tinham correntes largas que facilitavam o movimento, mas ainda assim era limitado. Peter viu quatro deles, dois homens, uma mulher e uma criança. Sua corrida chegou diminuir ao ver a criança olhando-o como se estivesse implorando para que a ajudasse escapar. A garotinha tinha os beiços feridos e um olho um pouco inchado, e tinha os olhos mais tristes que Peter vira na vida. Eram escravos, sabia.
— Vamos, Peter — chamou Lily, puxando-lhe pelo braço para que continuassem a correr.
A perna de Peter ainda estava sarando, por isso ele corria sentindo dor e com dificuldades.
Continuaram até que Thomas não aguentou mais e travou. Desde o começo do ataque, ele não tinha atacado ninguém, por medo, coisa que deu oportunidade do outro guarda atacar Peter que desviou da espada por pouco. Estava mais correndo pelos amigos do que por si mesmo, pois se fosse por ele pararia nos primeiros passos, de tanto medo. Conforme foram cercados e mais guardas apareciam, mais medo tinha de prosseguir e menos esperança de conseguir escapar, até que finalmente travou.
— Que porra, Thomas? — exclamou Peter ao perceber o amigo parando de repente.
— Eu não consigo — falou Thomas, triste e culpado.
— Você consegue. Qual é, cara, eles vão nos alcançar!
Thomas apenas olhou pra baixo e aquilo foi a resposta definitiva para Peter.
— Precisamos continuar, Peter! — pediu Lily, puxando-lhe pelo braço.
Mas já era tarde demais, naquele tempo perdido, tinham alcançado o trio e tudo que puderam fazer foi erguer os braços, demonstrando estarem rendidos.
O trio foi jogado de joelhos em outro salão, menor do que o primeiro, mas muito mais bonito e enfeitado. Bem no fundo tinham grandes janelas, uma em cada lado do que devia ser uma porta dupla sem as portas, que dava uma visão bem clara para floresta lá muito embaixo e a cidade que não puderam enxergar direito. Alguns passos em frente à eles, havia uma mesa com algumas cadeiras e pessoas nelas. Todos bem vestidos, se estivessem na Idade Média, seriam nobres, chutou Peter.
Virou os olhos para Thomas que estava de cabeça baixa, muito triste e decepcionado com si mesmo, mas por mais que estivesse chateado com o amigo, não podia culpá-lo. Thomas nunca brigara na vida, mesmo nos piores momentos na Terra, ele estava fora da carnificina. Suspirou, já era tarde demais, chorar pelo leite derramado não serviria de nada, só rezava para que algum grupo tivesse escapado.
Observou o grupo na mesa, notando que a principal entre eles era uma
mulher bonita com algumas cicatrizes no rosto, todos pareciam se dirigir à ela e respeitá-la. Outra pessoa que chamou-lhe atenção foi uma
garota ao lado da mulher, silenciosa e observando-os também. Trocaram um olhar de alguns segundos, ela parecia enxergar através de sua alma, algo que o fez desviar os olhos. E quanto mais conversavam e lançavam olhares para eles, alguns ali que pareciam bem irritados, mais aquilo o enfurecia. Aprisionaram uma parte de seus amigos, mataram uma parte muito maior. Seus principais amigos não tinha nem noção se estavam vivos, e rezava para que estivessem. Sua melhor amiga fora morta por um povo que acreditava fazer parte daquele, mesmo que aquele fosse diferente dos canibais. E agora falavam, provavelmente, sobre eles numa calma e serenidade, como se fossem objetos.
— Isso, continuem conversando, seus filhos da puta. Vocês são um monte de esterco, que espero um dia poder matar todos. Vão se foder, seus arrombados.
Alguns deles olharam para ele.
— Sua mãe devia ser um tolete de bosta pra sair um cara feio que nem você — disse Peter encarando um dos homens na mesa que fechou o rosto ao escutar aquilo. — Vai tomar no cu.
— Peter — chamou Lily.
— Vocês todos são uns merdas, seus filhos da puta! — gritou Peter.
— Peter — chamou Lily novamente, percebendo algo.
— Vão se foder! E você também sua piranha do caralho, eu espero que você seja fodida por todos seus guardas, sua vagabunda do caralho!
— Você sabe que podemos te entender, não é? — questionou a mulher que notara, com um sorriso maroto.
Peter ficou sem reação, Thomas ficou surpreso e Lily engoliu em seco.
— É... — falou Peter, tentando pensar em algo para dizer. — Desculpa, gente.
— Você tá bem? — perguntou Caterine para Alice.
Ambas estavam sentadas num canto da parede, em frente ao sala de reunião do Conselho, esperando que as chamasse.
— Sim — respondeu Alice, hesitando por alguns segundos novamente. — E você?
Caterine parou para pensar, mas no final disse que estava bem também e ficaram em silêncio até que os chamassem para dentro. Contou sobre tudo que aconteceu no campo e sua teoria, esperando que enviassem um grupo de soldados em busca dos amigos no mesmo momento, mas infelizmente não foi como esperado.
— Por mais que eu goste da ideia de seus amigos estarem vivos, eu não posso mandar nenhum de nossos guardas para fora desse acampamento — disse Chanceler Bryan.
— Então nos deixe ir! — pediu Alice. — Nos dê armas e nos deixe ir atrás deles!
O velho e gordo Leon riu do pedido.
— Nós? Dar armas à vocês? — zombou.
Alice dirigiu um olhar furioso à ele. Estava mais irritada com o pai do que com o velho gordo, aquele maldito além de roubar sua infância e adolescência, roubar a felicidade de sua mãe, tinha roubado a imagem de Alice também, ao obrigá-la a matá-lo. Ninguém naquele maldito lugar confiaria a ela um simples garfo.
— Sua amiga não parece muito afim de sair desse acampamento — observou ele, apontando para Caterine que estava quieta.
— Ela está! — afirmou Alice. Virou-se para Caterine quando a mesma não a apoiou. — Você está, não é?
— No mês que vocês passaram fora, recebemos muitos ataques pela floresta. Semana retrasada, enviamos um grupo com vários guardas e no dia seguinte que saíram, suas cabeças estavam nos portões. O único motivo de terem encontrado Caterine, foi porque ela chegou no perímetro que os guardas estavam checando. Não podemos deixar nem nossos homens, nem vocês saírem, exatamente para que sobrevivam. Foi por isso que atiramos os fogos de artifício, pelo perigo de sair desse acampamento — explicou Lauren, a preocupação em sua voz era notável. — Você acabou de ter seu irmão de volta, Caterine, não desperdice isso. Nem você Alice, vocês duas estão livres das grades agora, estão livres de qualquer perigo também. Não corram de volta para ele.
Chanceler Bryan notou o desespero das garotas e disse:
— Prometo que quando tivermos a oportunidade e a segurança para enviar um grupo, faremos isso no mesmo instante.
Alice vendo que não conseguiria tirar mais nada dali, saiu do salão chutando as portas, enquanto Caterine apenas acenou com a cabeça lentamente e saiu dali de forma mais sútil.
— Alice, calma! — chamou a garota ao chegar no corredor que ela já saia, bem distante.
— Vai se foder, sua piranha traidora! — gritou a garota, enfurecida, dando o dedo do meio, antes de sumir dali.
Toda determinação que tinha de ir atrás dos seus amigos tinha ido ralo a baixo ao ter a chance de viver novamente com seu irmão, de brincar e rir com ele, de sentir-se feliz e completa de novo. Mas o sentimento era agridoce. Cada dia que passava com ele, a fazia sentir mais vergonha e culpa de simplesmente estar ignorando seus amigos. E não era só aquilo. As vezes o irmão a fazia rir tanto, que em meios as risadas, ela soltava soluços de quem estava pronto para chorar, disfarçando-os rapidamente para o menino não notar.
Mas o que a lhe perturbava de verdade, era nunca ter dado importância para o massacre que participara, para o tanto de sangue que derramara. Nunca tinha dado importância até reencontrar seu irmão e sua vida antiga. Naquele momento, ela notou que sua vida poderia continuar como a antiga, mas ela não era mais a mesma. Nunca seria.
Estava de volta no campo, cercado de crianças e adolescentes, os jovens prisioneiros da Arca que o acompanharam durante aquele mês na Terra, todos sendo mortos, todos lhe sujando do próprio sangue que espirrava das feridas, até mesmo quem estava distante, as tripas que saiam deles iam em sua direção, o sujava também. Adam queria gritar, mas não conseguia. Queria pedir ajudar, mas não tinha ninguém. Estava sozinho, e aquilo o estava sufocando. Então, encontrou-se cercado por todos lados pelos homens em cavalo que aproximaram-se e ficaram as espadas nele.
Acordou berrando, assustando as crianças que correram para fora do quarto com os gravetos nas mãos, que cutucavam no rapaz dormindo. Respirava desesperadamente com a mão no peito, com uma grande vontade de chorar. Virou-se para ver onde estava e encontrou-se num quarto modesto, feito de madeira, cipos e outras coisas que formavam aquilo. Estava deitado numa cama, um móvel velho, mesmo que confortável, como todos outros no quarto. Tinha um tapete vermelho que era apenas um pano largo e cheio de furos no chão.
Tentou levantar-se da cama, mas foi impedido por uma mulher de vestido surrado que o empurrou de volta para ela, que tinha chegado rindo ao ver as crianças correndo, desesperadas. Trazia um balde de água com um pano dentro e na mão um pote com um tipo de pasta esverdeada. Possuía cabelos castanhos e não era muito alta, mas era tão imponente quanto homens robustos — que em sua maioria, desejavam-na. Sua expressão calma e séria, assim como seus movimentos, lhe davam um ar de sabedoria.
— Tira a mão de mim, porra! — empurrou-a para longe quando ela tentou mexer em sua perna.
— Calma, não se levanta, sua perna vai piorar — pediu ela.
Toda raiva e suspeita de Adam foram trocados por surpresa e curiosidade.
— Você fala minha língua? — questionou ele.
— Muitos de nós falamos a língua de vocês, Skaikru — respondeu ela num tom sério. — Posso olhar sua perna agora?
— Não.
A mulher suspirou e sentou no chão, ao lado da cama.
— Você é uma canibal?
Ela pareceu não entender a palavra.
— Pessoa que come as outras. Vários do seu povo nos atacaram.
Ela riu e olhou para trás, coisa que Adam fez também, vendo as crianças todas com a cabeça para fora duma parede que devia ser o corredor, observando-o com medo.
— Não, Skaikru, não somos. Eles são pessoas ruins que moram há uma certa distância de nós. Treikru. Nós somos Triku. E meu nome é Teya, caso queira saber.
Adam não entendeu nada do que ela tinha explicado, mas sua cabeça estava dolorida e cheia demais para se atentar aquilo agora.
— Onde eu estou?
— Você está na minha casa, aos meus cuidados, na minha vila. Sou a curandeira, então vou te perguntar uma última vez, posso olhar sua perna?
Adam ficou emburrado por alguns segundos, mas cedeu, deixando-a mexer em sua perna. Estava confuso, perdido e desconfiado, não sabia o que fazer e o que não fazer ali. Parecia estar num daqueles momentos que bebia até quase ter alucinações. Só restou observá-la desamarrando o pano onde sua perna estava machucada, limpando o ferimento com outro pano, umedecido pela água do balde, de forma bem cuidadosa, então passando a pasta que ardeu um pouco tirando um gemido de dor dele, mas logo passou e ela enrolou outro pano ali.
— Você vai melhorar mais rápido se não tentar levantar e sair correndo daqui — explicou ela, sorrindo.
Teya, seus cuidados e seu sorriso o lembrava Lauren, a médica chefe da Arca, organizadora da estação médica e membro do Conselho. A mulher que era quase uma segunda mãe para ele de tanto que cuidou dele na ausência da mãe real e após a morte do pai, mas nunca a dissera aquilo, não dizia nada que sentia para ninguém.
— Tudo bem?
Adam ignorou a pergunta da mulher e olhou em volta, analisando o quarto e pensando em tudo que vivera na Terra desde que tinham caído ali, o quanto diferenciava-se dos contos e imagens.
— Muita coisa mudou aqui em cem anos... — murmurou para si mesmo.
Teya que conseguiu escutar, ergueu uma sobrancelha.
— Cem anos?
— Sim, mulher, cem anos desde que a Terra foi destruída e milhões de pessoas morreram.
— Você está falando de Praimfaya? — questionou ela. Era assim que o povo dela chamava.
— Praimfaya?
— A guerra que acabou com o Antigo Mundo.
— Sim, disso que to falando.
Teya cuspiu no chão e riu.
— Qual a graça? — questionou Adam, preferindo ignorar a mulher cuspindo.
— A graça é que Praimfaya aconteceu há mais de trezentos anos, menino. Não cem.
O trio estava caminhando desde que o sol tinha aparecido e começaram pensar que estavam perdidos ao nunca chegarem na Arca, foi um longo tempo até que algo acontecesse. Escutaram vozes, esconderam-se atrás das árvores e viram um grande grupo de pessoas aproximando-se. Jeremy reconheceu a que vinha em frente logo de primeira, era seu tio Sebastian Ward, um dos membros do Conselho. Tyler e Pietro que notaram que eram pessoas da Arca saíram de Jeremy das árvores e aproximaram-se do grupo que teve como primeira reação levantar as armas na direção deles, gritando para se renderem.
— Somos da Arca! Meu nome é Tyler O'Neil Sullivan! — berrou Tyler, erguendo os braços.
— Eu também, sou um guarda! — gritou Pietro.
Jeremy não moveu os braços. Foi ele quem os olhos de Sebastian fixaram-se primeiro. Ele tinha mudado muito desde que fora enviado a Terra, mas Ward conhecia o sobrinho e mesmo com dificuldade, o reconheceu.
— Jeremy? — perguntou o homem, abaixando a arma e aproximando-se.
Como resposta, o sobrinho de Ward apenas acenou com a cabeça. Ao ser abraçado, não devolveu o gesto e ficou parado, agoniado com aquele contato e ansioso para que acabasse logo.
— Como você...? — Sebastian nem mesmo conseguiu terminar a pergunta, ele nem sabia onde começar para entender o que tinha se passado com o sobrinho, pensou que o rapaz tinha morrido junto com os cem. Mas, por algum motivo, resolveu colocar como prioridade algo triste. — Seu pai... ele não sobreviveu a queda da Arca.
— Oh... — Foi tudo que Jeremy conseguiu falar naquele momento, não conseguiu ter uma reação. Mas a dor foi sentida, de forma confusa, mas tinha sido sentida. — E meu irmão?
— Não sei, provavelmente na estação Alfa.
Tyler olhou para o grupo de pessoas e era um bom número, bem grande.
— Para onde vocês estão indo? — perguntou, curioso.
— Para o mesmo lugar que vocês, provavelmente — respondeu Sebastian. — A Arca. Vimos os fogos de artifício também.
Sebastian olhou bem para o rapaz e pensou no nome que ele tinha gritado ao apresentar-se, então lembrou-se dele, o rapaz que tinha invadido a sala de controle da prisão para botar uma música.
— Você conhece algum Todd Ward? É meu filho — perguntou ele, preocupado e esperançoso.
— Morto... por terráqueos. — Tyler demorou para responder, pensando no que dizer, resolvendo mentir para evitar qualquer problema a Peter se voltassem a vê-lo.
O homem teve toda esperança destruída e seu rosto tornou-se tão desolado que até mesmo Tyler sentiu um pouco de pena.
Caterine não conseguia dormir desde o dia que chegara na Arca, não importava o quanto tentasse, então apenas andava pelos corredores da Arca, de noite, perambulando e esperando que o tempo passasse mais rápido que ela esperava. Estava perdida em seus pensamentos, quando começou escutar vozes, estas que a fizeram ficar em alerta no mesmo momento, olhando para todos lados, preocupada. Era seu trauma. Não conseguia ficar mais de guarda baixa em nenhum lugar, nem mesmo com seu irmão no meio da cantina, sempre esperava algum ataque ou alguém aparecendo pelas suas costas, tentando acertar uma maça em sua cabeça.
Apenas ignorou e continuou andando, surpreendendo-se ao encontrar Alice com o rosto enfiado nas pernas, ao lado da porta de seu quarto.
— Tudo bem, Alice? — perguntou Caterine, preocupado, agachando-se ao lado da garota.
Alice ergueu o rosto e mostrou os olhos lacrimejados.
— Eu posso confiar em você? — perguntou ela, mas não deixou Caterine responder, continuando: — Eu não estou bem, Caterine. Eu não estou bem. — E começou chorar, jogando-se no peito de Caterine que a abraçou com carinho. — Eu não estou bem. Eu não estou bem.
Por muitos dias, Alice tinha mentido para todos que perguntavam se ela estava bem, ao ponto de mentir para si mesma. Mas ela nunca esteve pior. E tudo que queria era alguém para ajudá-la, mas não tinha ninguém, ninguém em quem se apoiar, se não a si mesma.
Caterine a levou para dentro do quarto, agradecendo seu irmão por ter um sono pesado, fechou a porta do banheiro e ficou em frente a Alice que não tirava os olhos do chão. A garota queria tomar banho, mas precisava da ajuda de Caterine por algum motivo. Seu último banho fora no dia que chegara na Arca, um que durou apenas alguns minutos.
Começou ajudá-la a tirar as roupas e a cada peça tirada, a garota começava chorar com mais intensidade, até ficar apenas com as roupas intimas. Caterine ficou chocada ao ver tantas cicatrizes nas costas da garota, tantas marcas roxas por todo corpo dela. Tinha um espelho bem em frente as duas garotas e por isso Alice estava de olhos fechados.
— Eu não consigo me ver assim, eu não consigo — explicou muito triste, chorando.
Alice sentia nojo e vergonha de seu corpo, toda vez que o olhava lembrava-se de todos o olhando, seus defeitos e qualidades, arremessando coisas nele, rindo dela, zombando dela, batendo nela. Olhá-lo, trazia toda essa sensação novamente.
Caterine que sabia apenas a versão mentirosa da história, ficara chocada ao ver aquilo e tão triste quanto, sentindo muita pena de Alice.
— Eu não consigo olhar pra ele e doi.. doi quando eu lavo...
A ruiva apenas ajudou Alice caminhar para dentro do chuveiro, tirou suas roupas intimas e começou lavá-la, com muito cuidado e carinho, pouco importando-se da intimidade gigante que precisavam ter ali. Alice continuava chorando com as mãos tampando os olhos, com vergonha do corpo e com vergonha do que estava pedindo para Caterine fazer. Quando não aguentou mais, sentou no chão do box e continuou a chorar, enquanto Caterine abaixou-se e colocou a mão em seu ombro.
— Eu quero minha mãe, eu quero minha mãe. — Repetia, chorando mais alto ainda, agarrando-se em Caterine que a abraçou com muita força, colocando a cabeça dela em seu peito e fazendo carinho em seu cabelo.
— Eu também, Alice, eu também...
Na manhã seguinte, acordaram deitadas no chão, cada uma com um travesseiro e um cobertor sobre elas. O cobertor viera de Brandon que acordara no meio da noite para ir no banheiro. Quando acordaram, os três foram tomar café da manhã, depois Brandon voltou para o quarto e as duas foram fazer algo importante para Alice que estava vestida com algumas roupas de Caterine.
— Você vai conseguir, Alice — incentivou Caterine, ao lado da garota.
Estavam em frente ao quarto onde Alice e seus pais viveram.
— Vou? — perguntou Alice, mais para si do que para Caterine, soltando uma risada morta.
Caterine agarrou uma das mãos de Alice e apertou-a com força, mostrando que a apoiaria e entraria no quarto com ela. Alice apenas deu um sorriso pequeno pra ela, respirou fundo e abriu a porta, entrando junto com a amiga ali. E foi como um sopro de nostalgia em seu rosto, uma nostalgia triste com momentos felizes, mas apesar de tudo, o medo de que entrar ali a destruiria, acabou não acontecendo. Ficaram ali alguns minutos, de mãos dadas, até que Alice foi em direção a cama e se sentou nela, com Caterine ao seu lado, ficando ambas em silêncio por muito tempo.
Então, pela primeira vez em sua vida, Alice começou desabafar sobre o que sofrera durante toda ela. Sobre seu pai, sobre sua mãe e sobre o que aconteceu na vila dos canibais. E Caterine ouviu com toda atenção do mundo, apertando a mão da garota com mais força quando ela terminou.
Não disseram mais nada depois daquilo, não tinha nada a dizer. O pequeno sorriso formado no rosto de Alice era suficiente, era como se tivesse tirado um grande peso de suas costas.
Dias depois, uma grande quantidade de pessoas chegou à Estação Alfa onde Caterine e Alice estavam. Ficaram no meio das pessoas que saíram para ver, no acampamento. E entre tantas pessoas das quais chegavam, viram Tyler e Pietro.